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Desafios para a concretização do SUS

Autores: Valéria Alpino Bigonha Salgado, Thiago Lopes Cardoso Campos, Catarina Batista da Silva Moreira[1]


Ensina a advogada e doutora em direito sanitário, Lenir Santos (2016)[2] que, apesar da natureza pública do SUS estar assentada na Constituição Federal e na Lei Orgânica da Saúde, o principal desafio da atualidade é o de concretizar o SUS como um sistema público conceitualmente completo e organizativamente complexo – que atua nas dimensões da prevenção, proteção e recuperação da saúde individual e coletiva da população; e que se conforma pelos 5.568 municípios brasileiros, 27 estados e União, todos gestores do Sistema e de todas as ações e serviços que devem se integrar nas regiões de saúde para dar conta de prover, à população brasileira, a integralidade da atenção à saúde.


Sem pretender desconsiderar ou mesmo minorar a importância dos fatores políticos, econômicos e culturais que incidem positiva e negativamente na concretização de um SUS eminentemente público, defende-se que a atual dissintonia entre o texto constitucional e os regramentos administrativos infraconstitucionais constitui um grave obstáculo à efetivação do Sistema tal como concebido na Constituição - público, descentralizado, organizado em rede regionalizada, com direção única em cada esfera de governo, aberto à participação e ao controle e social; responsável pelo atendimento integral aos cidadãos brasileiros.


O atual ordenamento jurídico ao qual estão submetidos os órgãos e entidades públicos de saúde é obsoleto, fragmentado e inadequado à atuação estatal, com várias legislações e normas em desacordo com os dispositivos constitucionais. As várias iniciativas de reforma implementadas pós-1988, com introdução de novos institutos jurídicos sintonizados com os novos paradigmas de atuação do Estado – mais flexíveis, ágeis, participativos e voltados para resultados, passaram a coexistir com marcos legais obsoletos e anacrônicos, tais como o Decreto-Lei nº 200, de 1967 e a Lei nº 4.320, de 1964, ambos aprovados durante o Regime Militar, dentro de um conceito de estado centralizado e refratário à participação e ao controle social.

Como consequência, tem-se instalado um cenário de insegurança jurídica crescente e generalizada; e na contramão das diretrizes constitucionais da eficiência e da ênfase na participação e controle social, observa-se, especialmente nos últimos anos, a expansão do fenômeno da exacerbação da função controle, com fortalecimento dos órgãos de controle interno e externo, acompanhada do enrijecimento das formas de atuação do Poder Executivo, efetivado pela aprovação de medidas legais e normativas de cunho cerceador, que têm limitado o espaço de atuação autônoma do administrador, com penalização de condutas empreendedoras e afetado negativamente a aplicação dos institutos jurídicos introduzidos pelas reformas administrativas.

Com isso, estimula-se a lógica do imobilismo e a postura do “não fazer”, num ambiente no qual “quem se aventura e faz” assume muita responsabilidade e se sujeita à penalização”.


Muito embora esses problemas afetem todos os setores da ação executiva do Estado Brasileiro, eles assumem importância especial no campo das políticas sociais, como a saúde pública, que, por serem intensivos na prestação de serviços diretos à população, requerem modelos organizativos e tecnologias jurídico-institucionais especiais, capazes de permitir ao Poder Executivo atender às demandas crescentemente maiores e mais complexas da população, as quais, por sua vez, exigem respostas ágeis e eficazes do Estado. Nesses setores, a aplicação do mesmo regime jurídico imposto às atividades estatais regulatórias, que implicam o exercício dos poderes estatais privativos, reservados aos órgãos da administração direta e entidades regidas integralmente pelo direito público, representa fator complicador e, em alguns casos, inviabilizador da ação estatal.


Todas as tentativas realizadas nos últimos anos de inovar no universo jurídico brasileiro, por meio da aprovação de modelos jurídico-institucionais alternativos, para a atuação estatal direta no setor social, como os consórcios públicos, as fundações estatais; e o modelo de “empresa pública social”, esbarraram em resistências políticas dentro e fora da máquina pública; com questionamentos jurídicos quanto à viabilidade constitucional de suas implementações; e passaram, gradativamente, a sofrer um processo de “autarquização” pelos órgãos responsáveis pelos sistemas administrativos da Administração Pública e órgãos de controle interno e externo, pela extensão gradativa, a eles, dos mesmos controles burocráticos aplicáveis à administração direta e às autarquias.


Dentre as principais dificuldades ou inadequações jurídico-administrativas com as quais se deparam gestores públicos, estaduais e municipais de saúde na organização de suas redes de serviços públicas, podem ser mencionadas as relacionadas: (a) à contratação e a fixação de profissionais de saúde, especialmente em localidades de difícil acesso e condições incipientes de trabalho; (b) aos limites de gastos com despesas de pessoal imposto pela Lei de Responsabilidade Fiscal; (c) à observância do teto remuneratório imposto pelo inciso XI do art. 37 da Constituição Federal; (d) à ausência de regramentos legais e normativos próprios e adequados à aplicação do instituto da licitação no setor de saúde; (e) ao regime orçamentário e contábil inflexível imposto às organizações públicas; (f) ao modelo autocentrado da burocracia pública, em todos os níveis, refratário aos paradigmas da gestão por resultados; e (g) ao “ativismo orientador” dos órgãos de controle externo.


As dificuldades dos gestores do Sistema Único de Saúde de contratar e fixar profissionais tem se mostrado um desafio, por vezes intransponível, especialmente nos municípios de pequeno porte, por várias razões, dentre elas as relacionadas às condições pouco atrativas do atual regime jurídico que rege as relações de trabalho da Administração Pública com esses profissionais, notadamente no que tange aos valores de remuneração; horários e condições de trabalho.


Os limites impostos pelo teto remuneratório vinculado aos subsídios percebido pelos respectivos prefeitos, impede que esses adotem padrões remuneratórios atrativos para os profissionais de saúde, principalmente para o médico, similares aos praticados pelo mercado; enquanto as limitações de despesas com pessoal, impostas pela Lei Complementar nº 101, de 2000 (lei de responsabilidade fiscal) prejudicam a capacidade do ente federativo de contratar pessoal próprio para os seus órgãos e entidades prestadores de serviços de saúde.


Os concursos públicos realizados por esses municípios não conseguem atrair profissionais suficientes (em grande parte pelos baixos salários e pelas dificuldades de assentamento do profissional em localidades menores e distantes), e que há alta rotatividade dos profissionais de saúde efetivamente contratados visto que esses acabam buscando melhores oportunidades de emprego em outros locais.

Essas, inclusive, têm sido as constatações do Tribunal de Contas da União, conforme Relatório de Auditoria realizado pela Secretaria de Controle Externo no Estado do Paraná, que resultou no Acórdão nº 352/2016 do Plenário do TCU:


“Um dos maiores problemas enfrentados na gestão dos sistemas municipais de saúde corresponde à falta de profissionais de saúde, sejam médicos, enfermeiros, entre outros. Segundo Levantamento realizado pelo TCU em 2013 (TC 026.797/2013-5), 10% dos leitos hospitalares estavam indisponíveis, sendo que a principal causa apontada pelos gestores, em quase 50% dos casos, referia-se à falta de profissionais de saúde.

Em 2013, uma das questões que mais recebeu atenção no Brasil foi a contratação temporária de médicos estrangeiros pelo SUS. O Programa “Mais Médicos” do Ministério da Saúde foi instituído a partir do diagnóstico de que algumas regiões do país não contam com médicos suficientes para garantir atendimento adequado à população. Além disso, haveria uma grave desigualdade na sua distribuição, tanto entre as unidades da federação quanto dentro delas, com concentração de profissionais nas capitais.

(...)O SUS enfrenta diversos obstáculos para contratar médicos e outros profissionais de saúde. Além de muitos profissionais não desejarem se deslocar para localidades distantes dos grandes centros e com estrutura muitas vezes precária, os salários dos servidores públicos municipais estão limitados pelo subsídio do prefeito, que não é atrativo para profissionais de nível superior, principalmente aqueles de maior especialização. Muitos concursos públicos realizados terminam desertos ou há uma alta rotatividade porque os servidores selecionados em pouco tempo procuram outras oportunidades. A Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101, de 4/5/2000) também impõe limites para gastos com pessoal, o que dificulta a ampliação dos quadros das secretarias de saúde, sendo que as despesas com pessoal na área de saúde consomem por volta de 80% do montante de seus recursos. (Relatório de Auditoria TCU-SECEX-PR - AC-352-5/16-P).


A carência de profissionais habilitados dentro das suas respectivas redes de saúde tem levado os gestores municipais de saúde a adotarem medidas alternativas, muitas delas sem respaldo legal suficiente para garantir o provimento dos serviços à sua população; dentre essas a contratação direta de profissionais de saúde; a terceirização de mão-de-obra. Outra alternativa muito utilizada é a celebração de contratos ou convênios com entidades civis com ou sem fins lucrativos, para provimento dos serviços, dentro do princípio da participação complementar da iniciativa privada no SUS.


Também o regime orçamentário e contábil dos órgãos da administração direta e das autarquias, regido pela Lei nº 4.320, de 1964 impõe várias restrições à gestão do recurso público como, por exemplo, a anualidade na aplicação dos recursos e a impossibilidade de consignar, no orçamento, dotações globais, destinadas a atender despesas de diversos tipos, o que dificulta a transposição de recursos de um projeto para outro.

Em resumo, o quadro de burocratismo excessivo e de ausência de autonomia e flexibilidade, indispensáveis à gestão eficiente das políticas públicas de saúde, tem conduzido induzido gestores públicos a adotarem soluções nem sempre ortodoxas, no afã de driblar os excessos do regime administrativo, orçamentário, contábil e financeiro e viabilizar a oferta de serviços de saúde à população.


A terceirização excessiva e indiscriminada de atividades e serviços junto ao setor privado é uma delas – prática que vem sendo arguida pelo Tribunal de Contas da União, com base nos seus achados de auditorias realizados em secretarias estaduais e municipais de saúde de todo o País. Cite-se, a título de exemplo, os achados constantes do TC 017.783/2014-3[3], que dentre outras irregularidades, identificou convênios, termos de parceria e contratos de gestão que terceirizaram funções não passíveis de serem terceirizadas, tais como (a) implantação do plano municipal de saúde; (b) recuperação e conservação da área física; (c) organização gerencial e funcionamento da farmácia, almoxarifado, da área de recursos humanos e do laboratório; (d) aquisição e localização de equipamentos; (e) manutenção geral das unidades de atendimentos; equipamentos e máquinas e veículos; (f) hierarquização e organização do fluxo e contrafluxo do atendimento; (g) contratação de serviços de terceiros; (h) aprimoramento do serviço de faturamento; (i) implantação de processo de acolhimento com avaliação e classificação de riscos; (j)implantação da política nacional de humanização.


Ainda que a curto prazo, a estratégia de fuga do regime administrativo por meio da contratação com o setor privado possa gerar resultados positivos, por viabilizar a realização da atividade ou serviço; seus efeitos a médio e a longo prazo são eminentemente negativos, desorganizadores e desorientadores. Desviam o investimento do fortalecimento, da ampliação e da consolidação da rede pública de saúde; afetam a sua capacidade operativa e a sua legitimidade perante a população; e, adicionalmente, põem em suspeição o uso dos modelos de parceria entre o Poder Público e o setor privado não lucrativo, contribuindo para demonizar as intenções e as práticas de um e de outro lado.


O Sistema Único de Saúde público, universal e provedor da atenção integral à saúde aos cidadãos, com equidade, é uma conquista da Sociedade Brasileira, consignada na Carta Maior do País. Sua consolidação, entretanto, depende do interesse, da vontade social de torná-lo, de fato, uma realidade; uma vez que não há como efetivar a Constituição se não pela sua defesa cotidiana, concreta e articulada. A revisão das formas jurídico-institucionais de atuação da rede pública de saúde para sua adequação aos desafios impostos pela Constituição é uma medida imperativa e urgente para efetivação do Sistema.


Impor às atividades executivas da rede pública de saúde o mesmo regime jurídico-administrativo e os mesmos controles que recaem sobre as atividades típicas e privativas da burocracia pública é uma forma velada de inviabilizar o SUS e promover a ação privada, fomentando, por um lado, a lógica que o privado é mais eficiente do que o público e, por outro, o preconceito contra a participação privada dentro do Sistema, já reconhecida como importante na própria Constituição Federal.

[1] Extraído do artigo “Os desafios à concretização do Sistema Único de Saúde, como um sistema eminentemente público”, publicado em 2016 pelos autores. [2] Conforme aula ministrada por Lenir Santos no V Curso de Especialização em Direito Sanitário Aplicado, em 27 de agosto de 2016, em Campinas (SP). [3] O TC 017.783/2014-3 de 2014, do Tribunal de Contas da União trata-se de Relatório de Auditoria que consolida Fiscalização de Orientação Centralizada – FOC, realizada na forma de auditoria de conformidade, que teve como objetivo avaliar a regularidade dos ajustes firmados pelos governos municipais com entidades privadas para a prestação de serviços de saúde, em municípios selecionados em seis estados do país: BA: Barra do Choça, Candeias, Ibirapitanga, Jeremoabo; MA: Imperatriz; PR: Bela Vista do Paraíso; RJ: Itaboraí; RS: Candelária, Porto Alegre e Vacaria; e SC: Balneário Camboriú.


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