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Considerações sobre a participação complementar no SUS

Autores: Valéria Alpino Bigonha Salgado, Thiago Lopes Cardoso Campos, Catarina Batista da Silva Moreira


Embora as atividades de assistência à saúde sejam livres à iniciativa privada, podendo ser exploradas no mercado ou exercidas por agentes sociais sem motivações lucrativas (cf. caput do art. 199 da Constituição), a participação da iniciativa privada, no âmbito do SUS, dá-se apenas de forma complementar, segundo diretrizes deste, e por força de contratos administrativos ou convênios celebrados com o Poder Público, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos (§1º do art. 199 da Constituição).


Em ambos os casos, a atuação privada, por assumir caráter de participação complementar no SUS, fica obrigada à observância dos princípios e diretrizes do SUS, estabelecidos na Lei nº 8.080, de 1990, sobretudo às seguintes:

a) ser desenvolvida de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo aos princípios estabelecidos no art. 7º da Lei nº 8080, de 1990, que incluem à obediência aos princípios da universalidade de acesso; da integralidade da assistência; da igualdade da assistência à saúde; da participação a comunidade; da regionalização e hierarquização dos serviços, dentre outros;

b) organizar-se de forma regionalizada e hierarquizada em níveis de complexidade crescente;

c) observar as normas regulatórias estabelecidas pela União;

d) submeter-se às normas técnicas e administrativas e aos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), mantido o equilíbrio econômico e financeiro do contrato/convênio;

e) ser gratuitas para os cidadãos (art. 43); e

f) observar os princípios éticos e as normas expedidas pelo órgão de direção do Sistema Único de Saúde (SUS) quanto às condições para seu funcionamento.


O § 1º do art. 199 da Constituição determina, ainda, que, na complementação de serviços da rede de saúde com os serviços de entidades privadas, o Poder Público dê preferência aos ajustes celebrados com aquelas sem fins lucrativos, por meio da compra desses serviços (contrato) ou pelo fomento (convênio).


A Lei nº 8.080, de 1990, nos seus arts. 24 a 26 regulamenta o instituto constitucional da participação complementar da iniciativa privada no Sistema Único de Saúde e estabelece que essa deve se limitar às situações em que as disponibilidades dos órgãos e entidades públicos forem insuficientes para garantir cobertura assistencial à população sob sua área de abrangência.


Em outras palavras, o gestor do SUS está autorizado a recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada, sempre que os serviços próprios da rede pública de saúde forem insuficientes para atender às necessidades da população. Nesses casos, ele pode optar: (i) pela contratação de serviços no mercado junto a entidades privadas com ou sem fins lucrativos, observada tabela de preços fixada pela Direção Nacional do Sistema e aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde (conforme art. 26, caput, §1º e 2º e art. 16, XIV da Lei nº 8.080, de 1990); ou (ii) pelo fomento a entidades civis sem fins lucrativos que atuem no campo da assistência à saúde, mediante a celebração de convênios ou outros instrumentos congêneres.Na celebração desses contratos ou convênios, os gestores devem observar os parâmetros de cobertura assistencial, critérios e valores de remuneração dos serviços contratados, estabelecidos pela Direção Nacional do Sistema e aprovados pelo Conselho Nacional de Saúde – CNS (art. 26, Lei nº 8.080, de 1990).


Sobre a participação complementar da iniciativa privada no âmbito do SUS é de efeito esclarecedor o teor do voto do Ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, ao Recurso Extraordinário 581.488-RS, de 03 de dezembro de 2015:

“Não se nega também que a saúde pública possa ser complementada pela iniciativa privada. Conforme salientado por Fernando Borges Mânica, em trabalho acadêmico, a própria Constituição Federal faz referência expressa à participação privada no sistema público de saúde e, “com isso, a delimitação do caráter complementar de participação da iniciativa privada na prestação de serviços públicos de saúde implica a análise do alcance do conteúdo constitucional da complementaridade, a qual deve ter como referencial tanto (i) o texto da Constituição, quanto (ii) as condições históricas, sociais e econômicas atuais e aquelas existentes no momento de elaboração do texto constitucional” (Participação privada na prestação de serviços públicos de saúde. In: Tese de Doutorado. Curso de Pós-Graduação em Direito na Universidade de São Paulo, 2009).

A Constituição Federal, portanto, ao disciplinar o direito à saúde, oferece expressamente a possibilidade de modernização da Administração Pública por meio da participação consensual e negociada da iniciativa privada tanto na gestão de determinadas unidades de saúde quanto na prestação de atividades específicas de assistência à saúde.

Essa parceria fica evidente na leitura dos arts. 197 e 199, § 1º, da Constituição Federal, a saber:

“Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.

(…)

Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada. § 1º – As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.”

A complementaridade do setor privado na área da saúde pública, inclusive, é reconhecida pelo Ministério da Saúde, que, em seu manual sobre doutrinas e princípios, elaborado pela Secretaria Nacional de Assistência à Saúde, reconhece ter a Constituição Federal definido que, quando houver insuficiência do setor público e for necessária a contratação de serviços privados, isso se deve dar sob três condições: “1a. - celebração de contrato, conforme as normas de direito público, ou seja, interesse público prevalecendo sobre o particular;

2a. - a instituição privada deverá estar de acordo com os princípios básicos e normas técnicas do SUS. Prevalecem, assim, os princípios da universalidade, equidade, etc., como se o serviço privado fosse público, uma vez que, quando contratado, atua em nome deste;

3a. - a integração dos serviços privados deverá se dar na mesma lógica organizativa do SUS, em termos de posição definida na rede regionalizada e hierarquizada dos serviços.

Dessa forma, em cada região, deverá estar claramente estabelecido, considerando-se os serviços públicos e privados contratados, quem vai fazer o que, em que nível e em que lugar.

Dentre os serviços privados, devem ter preferência os serviços não lucrativos, conforme determina a Constituição.

Assim, cada gestor deverá planejar primeiro o setor público e, na sequência, complementar a rede assistencial com o setor privado, com os mesmos concertos de regionalização, hierarquização e universalização.

Torna-se fundamental o estabelecimento de normas e procedimentos a serem cumpridos pelos conveniados e contratados, os quais devem constar, em anexo, dos convênios e contratos” (vide ABC do SUS – Doutrina e Princípios. Brasília: Ministério da Saúde, 1999).

A ação complementar não implica que o privado se torne público ou que o público se torne privado. Cuida-se de um processo político e administrativo em que o Estado agrega novos parceiros com os particulares, ou seja, com a sociedade civil, buscando ampliar, completar, ou intensificar as ações na área da saúde.

Não significa, sob o espectro constitucional, que somente o poder público deva executar diretamente os serviços de saúde - por meio de uma rede própria dos entes federativos -, tampouco que o poder público só possa contratar instituições privadas para prestar atividades meio, como limpeza, vigilância, contabilidade, ou mesmo determinados serviços técnicos especializados, como os inerentes aos hemocentros, como sustentado por parte da doutrina2.

Conforme salientado por Geisa de Assis Rodrigues, “as instituições privadas têm liberdade para prestar serviços de saúde. Podem atuar de forma complementar ao SUS ou não. As que complementam as atividades do Poder Público no SUS estão plenamente sujeitas às suas regras, sendo preferencialmente de fins não lucrativos ou entidades filantrópicas. Os serviços prestados por meio de convênio ou contrato público são remunerados, observando os critérios fixados pela Direção nacional do SUS e aprovados pelo Conselho Nacional de Saúde. É importante ressaltar que os valores são estabelecidos através de um ato administrativo complexo, ou seja, só é fixado quando definido pelo Ministro da Saúde e aprovado pelo Conselho Nacional de Saúde, como determina a lei” (op. cit. p. 330).

Sobre a necessidade de se observar o iter a ser trilhado para se chegar ao montante da remuneração, assim já decidiu o Colendo Superior Tribunal de Justiça:

“Esta remuneração, à obviedade, há de ser paga pelo poder público ao particular colaborador, desde que comprovadas as despesas, os serviços e uma vez apresentado o demonstrativo econômico-financeiro a garantir, inclusive, a qualidade dos serviços executados, havendo que se resguardar sempre o equilíbrio econômico e financeiro” (STJ - Resp. 995003, Primeira Turma, Rel. Min. José Delgado, DJ de 5/3/08).

Isso não implica que haja supremacia da Administração sobre o particular, que pode atuar, em parceria com o setor público, obedecendo sempre, como mencionado, os critérios da consensualidade e da aderência às regras públicas. Como se constata pelas exitosas experiências em países como Alemanha, Canadá, Espanha, França, Holanda, Portugal e Reino Unido, dentre outros, na área da saúde, importantes requisitos das parcerias, como contratualização, flexibilidade, possibilidade de negociação, consensualismo, eficiência e colaboração são fundamentais para que os serviços possam ser prestados de forma ao menos satisfatória.

Dessa perspectiva, como já escreveu Mânica:

“[P]ode-se concluir que a assistência prestada por meio da iniciativa privada deve complementar as atividades de competência do SUS, as quais não podem ser integralmente executadas por terceiro. Tal entendimento veio ao encontro do que dispõe ao artigo 197, que não faz qualquer balizamento à possibilidade de participação privada na prestação de serviços.

Assim, quando a Constituição Federal menciona a complementaridade da participação privada no setor de saúde, ela determina que a participação da iniciativa privada deve ser complementar ao SUS, incluídas todas as atividades voltadas à prevenção de doenças e à promoção, proteção e recuperação da saúde, dentre as quais aquelas de controle e fiscalização” (Fernando Borges Mânica, op. cit., p. 7).


A dupla via da participação complementar do setor privado no SUS- pelo fomento a entidades sem fins lucrativos na realização de finalidades de interesse público e recíproco ou pela compra de serviços - não alcança o exercício de atividades e serviços públicos privativos, que impliquem o uso de poderes que a Constituição Federal ou a lei reservaram aos órgãos e entidades públicos, entendendo-se como privativos, as atividades ou serviços públicos próprios do Poder Público, vedados, pela Constituição e pela lei, a entidades privadas. São eles: as atividades de direção superior, regulação, regulamentação e controle das atividades administrativas (Constituição Federal, arts 61, 70 a 74 e 84); defesa do Estado e das instituições democráticas (Constituição Federal, Título V); tributação e o orçamento (Constituição Federal, Título VI) e previdência social. Por extensão, as atividades ou serviços públicos ditos não privativos são aqueles livres à iniciativa privada, tais como os serviços sociais ou voltados para o mercado.


Outro aspecto de relevância é que a autorização constitucional de complementação das ações e serviços públicos de saúde junto ao setor privado não torna o SUS um “sistema de saúde nacional”, que integra ações e serviços públicos e privados de saúde.


As ações e serviços de saúde privados não fazem parte do SUS. O Sistema Único de Saúde descrito pelo art. 198 da Carta Maior é essencialmente público, conformado por uma rede de ações e serviços realizados diretamente pelos órgãos da administração direta dos entes federativos; assim como de suas autarquias; fundações públicas de direito público ou de direito privado; empresas estatais e consórcios públicos, instituídos sob a égide da Lei nº 11.107, de 2005.


Sobre as empresas estatais, vale a pena abrir um parênteses para comentar que, apesar de não se tratar de um modelo jurídico-institucional apropriado para realização de atividades e serviços públicos de saúde, de natureza gratuita para a população; nos últimos anos, viu-se o surgimento de empresas estatais da área da saúde, com estatutos jurídicos modificados pelas respectivas leis autorizativas de forma a lhes conceder modelagem de “empresa estatal social”, cujas competências e atividades não são voltadas à exploração de serviços no mercado mas relacionadas a provimento de benefícios sociais gratuitos à população. São exemplos de empresas públicas sociais, no âmbito federal, a Empresa Brasileira de Hemoderivados (Hemobrás) e a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh); ambas dotadas de estatuto jurídico empresarial, regidas pela Lei nº 13.303, de 2016.


A participação da iniciativa privada no SUS deve ser, sempre, a exceção, ocorrendo apenas em caráter complementar, quando as ações e serviços de saúde prestados pelos órgãos e entidades públicos forem insuficientes para cobrir a demanda da população.


Nesses casos, os serviços privados complementares contratados ou financiados pelo Poder Público mediante celebração de ajustes específicos com um gestor do SUS, devem se sujeitar à observância dos regramentos do SUS, conforme estabelecido no §2º do art. 26 da Lei nº 8.080, de 1990.


Extraído do artigo “Os desafios à concretização do Sistema Único de Saúde, como um sistema eminentemente público”, publicado em 2016 pelos autores.


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