Desafios para a concretização do SUS
- ValƩria A. B. Salgado
- 7 de jul. de 2023
- 8 min de leitura
Atualizado: 8 de jul. de 2023
Autores: ValƩria Alpino Bigonha Salgado, Thiago Lopes Cardoso Campos, Catarina Batista da Silva Moreira[1]
Ensina a advogada e doutora em direito sanitĆ”rio, Lenir Santos (2016)[2] que, apesar da natureza pĆŗblica do SUS estar assentada na Constituição Federal e na Lei OrgĆ¢nica da SaĆŗde, o principal desafio da atualidade Ć© o de concretizar o SUS como um sistema pĆŗblico conceitualmente completo e organizativamente complexo ā que atua nas dimensƵes da prevenção, proteção e recuperação da saĆŗde individual e coletiva da população; e que se conforma pelos 5.568 municĆpios brasileiros, 27 estados e UniĆ£o, todos gestores do Sistema e de todas as aƧƵes e serviƧos que devem se integrar nas regiƵes de saĆŗde para dar conta de prover, Ć população brasileira, a integralidade da atenção Ć saĆŗde.
Sem pretender desconsiderar ou mesmo minorar a importĆ¢ncia dos fatores polĆticos, econĆ“micos e culturais que incidem positiva e negativamente na concretização de um SUS eminentemente pĆŗblico, defende-se que a atual dissintonia entre o texto constitucional e os regramentos administrativos infraconstitucionais constitui um grave obstĆ”culo Ć efetivação do Sistema tal como concebido na Constituição - pĆŗblico, descentralizado, organizado em rede regionalizada, com direção Ćŗnica em cada esfera de governo, aberto Ć participação e ao controle e social; responsĆ”vel pelo atendimento integral aos cidadĆ£os brasileiros.
O atual ordenamento jurĆdico ao qual estĆ£o submetidos os órgĆ£os e entidades pĆŗblicos de saĆŗde Ć© obsoleto, fragmentado e inadequado Ć atuação estatal, com vĆ”rias legislaƧƵes e normas em desacordo com os dispositivos constitucionais. As vĆ”rias iniciativas de reforma implementadas pós-1988, com introdução de novos institutos jurĆdicos sintonizados com os novos paradigmas de atuação do Estado ā mais flexĆveis, Ć”geis, participativos e voltados para resultados, passaram a coexistir com marcos legais obsoletos e anacrĆ“nicos, tais como o Decreto-Lei nĀŗ 200, de 1967 e a Lei nĀŗ 4.320, de 1964, ambos aprovados durante o Regime Militar, dentro de um conceito de estado centralizado e refratĆ”rio Ć participação e ao controle social.
Como consequĆŖncia, tem-se instalado um cenĆ”rio de inseguranƧa jurĆdica crescente e generalizada; e na contramĆ£o das diretrizes constitucionais da eficiĆŖncia e da ĆŖnfase na participação e controle social, observa-se, especialmente nos Ćŗltimos anos, a expansĆ£o do fenĆ“meno da exacerbação da função controle, com fortalecimento dos órgĆ£os de controle interno e externo, acompanhada do enrijecimento das formas de atuação do Poder Executivo, efetivado pela aprovação de medidas legais e normativas de cunho cerceador, que tĆŖm limitado o espaƧo de atuação autĆ“noma do administrador, com penalização de condutas empreendedoras e afetado negativamente a aplicação dos institutos jurĆdicos introduzidos pelas reformas administrativas.
Com isso, estimula-se a lógica do imobilismo e a postura do ānĆ£o fazerā, num ambiente no qual āquem se aventura e fazā assume muita responsabilidade e se sujeita Ć penalizaçãoā.
Muito embora esses problemas afetem todos os setores da ação executiva do Estado Brasileiro, eles assumem importĆ¢ncia especial no campo das polĆticas sociais, como a saĆŗde pĆŗblica, que, por serem intensivos na prestação de serviƧos diretos Ć população, requerem modelos organizativos e tecnologias jurĆdico-institucionais especiais, capazes de permitir ao Poder Executivo atender Ć s demandas crescentemente maiores e mais complexas da população, as quais, por sua vez, exigem respostas Ć”geis e eficazes do Estado. Nesses setores, a aplicação do mesmo regime jurĆdico imposto Ć s atividades estatais regulatórias, que implicam o exercĆcio dos poderes estatais privativos, reservados aos órgĆ£os da administração direta e entidades regidas integralmente pelo direito pĆŗblico, representa fator complicador e, em alguns casos, inviabilizador da ação estatal.
Todas as tentativas realizadas nos Ćŗltimos anos de inovar no universo jurĆdico brasileiro, por meio da aprovação de modelos jurĆdico-institucionais alternativos, para a atuação estatal direta no setor social, como os consórcios pĆŗblicos, as fundaƧƵes estatais; e o modelo de āempresa pĆŗblica socialā, esbarraram em resistĆŖncias polĆticas dentro e fora da mĆ”quina pĆŗblica; com questionamentos jurĆdicos quanto Ć viabilidade constitucional de suas implementaƧƵes; e passaram, gradativamente, a sofrer um processo de āautarquizaçãoā pelos órgĆ£os responsĆ”veis pelos sistemas administrativos da Administração PĆŗblica e órgĆ£os de controle interno e externo, pela extensĆ£o gradativa, a eles, dos mesmos controles burocrĆ”ticos aplicĆ”veis Ć administração direta e Ć s autarquias.
Dentre as principais dificuldades ou inadequaƧƵes jurĆdico-administrativas com as quais se deparam gestores pĆŗblicos, estaduais e municipais de saĆŗde na organização de suas redes de serviƧos pĆŗblicas, podem ser mencionadas as relacionadas: (a) Ć contratação e a fixação de profissionais de saĆŗde, especialmente em localidades de difĆcil acesso e condiƧƵes incipientes de trabalho; (b) aos limites de gastos com despesas de pessoal imposto pela Lei de Responsabilidade Fiscal; (c) Ć observĆ¢ncia do teto remuneratório imposto pelo inciso XI do art. 37 da Constituição Federal; (d) Ć ausĆŖncia de regramentos legais e normativos próprios e adequados Ć aplicação do instituto da licitação no setor de saĆŗde; (e) ao regime orƧamentĆ”rio e contĆ”bil inflexĆvel imposto Ć s organizaƧƵes pĆŗblicas; (f) ao modelo autocentrado da burocracia pĆŗblica, em todos os nĆveis, refratĆ”rio aos paradigmas da gestĆ£o por resultados; e (g) ao āativismo orientadorā dos órgĆ£os de controle externo.
As dificuldades dos gestores do Sistema Ćnico de SaĆŗde de contratar e fixar profissionais tem se mostrado um desafio, por vezes intransponĆvel, especialmente nos municĆpios de pequeno porte, por vĆ”rias razƵes, dentre elas as relacionadas Ć s condiƧƵes pouco atrativas do atual regime jurĆdico que rege as relaƧƵes de trabalho da Administração PĆŗblica com esses profissionais, notadamente no que tange aos valores de remuneração; horĆ”rios e condiƧƵes de trabalho.
Os limites impostos pelo teto remuneratório vinculado aos subsĆdios percebido pelos respectivos prefeitos, impede que esses adotem padrƵes remuneratórios atrativos para os profissionais de saĆŗde, principalmente para o mĆ©dico, similares aos praticados pelo mercado; enquanto as limitaƧƵes de despesas com pessoal, impostas pela Lei Complementar nĀŗ 101, de 2000 (lei de responsabilidade fiscal) prejudicam a capacidade do ente federativo de contratar pessoal próprio para os seus órgĆ£os e entidades prestadores de serviƧos de saĆŗde.
Os concursos pĆŗblicos realizados por esses municĆpios nĆ£o conseguem atrair profissionais suficientes (em grande parte pelos baixos salĆ”rios e pelas dificuldades de assentamento do profissional em localidades menores e distantes), e que hĆ” alta rotatividade dos profissionais de saĆŗde efetivamente contratados visto que esses acabam buscando melhores oportunidades de emprego em outros locais.
Essas, inclusive, têm sido as constatações do Tribunal de Contas da União, conforme Relatório de Auditoria realizado pela Secretaria de Controle Externo no Estado do ParanÔ, que resultou no Acórdão nº 352/2016 do PlenÔrio do TCU:
āUm dos maiores problemas enfrentados na gestĆ£o dos sistemas municipais de saĆŗde corresponde Ć falta de profissionais de saĆŗde, sejam mĆ©dicos, enfermeiros, entre outros. Segundo Levantamento realizado pelo TCU em 2013 (TC 026.797/2013-5), 10% dos leitos hospitalares estavam indisponĆveis, sendo que a principal causa apontada pelos gestores, em quase 50% dos casos, referia-se Ć falta de profissionais de saĆŗde.
Em 2013, uma das questƵes que mais recebeu atenção no Brasil foi a contratação temporĆ”ria de mĆ©dicos estrangeiros pelo SUS. O Programa āMais MĆ©dicosā do MinistĆ©rio da SaĆŗde foi instituĆdo a partir do diagnóstico de que algumas regiƵes do paĆs nĆ£o contam com mĆ©dicos suficientes para garantir atendimento adequado Ć população. AlĆ©m disso, haveria uma grave desigualdade na sua distribuição, tanto entre as unidades da federação quanto dentro delas, com concentração de profissionais nas capitais.
(...)O SUS enfrenta diversos obstĆ”culos para contratar mĆ©dicos e outros profissionais de saĆŗde. AlĆ©m de muitos profissionais nĆ£o desejarem se deslocar para localidades distantes dos grandes centros e com estrutura muitas vezes precĆ”ria, os salĆ”rios dos servidores pĆŗblicos municipais estĆ£o limitados pelo subsĆdio do prefeito, que nĆ£o Ć© atrativo para profissionais de nĆvel superior, principalmente aqueles de maior especialização. Muitos concursos pĆŗblicos realizados terminam desertos ou hĆ” uma alta rotatividade porque os servidores selecionados em pouco tempo procuram outras oportunidades. A Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101, de 4/5/2000) tambĆ©m impƵe limites para gastos com pessoal, o que dificulta a ampliação dos quadros das secretarias de saĆŗde, sendo que as despesas com pessoal na Ć”rea de saĆŗde consomem por volta de 80% do montante de seus recursos. (Relatório de Auditoria TCU-SECEX-PR - AC-352-5/16-P).
A carĆŖncia de profissionais habilitados dentro das suas respectivas redes de saĆŗde tem levado os gestores municipais de saĆŗde a adotarem medidas alternativas, muitas delas sem respaldo legal suficiente para garantir o provimento dos serviƧos Ć sua população; dentre essas a contratação direta de profissionais de saĆŗde; a terceirização de mĆ£o-de-obra. Outra alternativa muito utilizada Ć© a celebração de contratos ou convĆŖnios com entidades civis com ou sem fins lucrativos, para provimento dos serviƧos, dentro do princĆpio da participação complementar da iniciativa privada no SUS.
Também o regime orçamentÔrio e contÔbil dos órgãos da administração direta e das autarquias, regido pela Lei nº 4.320, de 1964 impõe vÔrias restrições à gestão do recurso público como, por exemplo, a anualidade na aplicação dos recursos e a impossibilidade de consignar, no orçamento, dotações globais, destinadas a atender despesas de diversos tipos, o que dificulta a transposição de recursos de um projeto para outro.
Em resumo, o quadro de burocratismo excessivo e de ausĆŖncia de autonomia e flexibilidade, indispensĆ”veis Ć gestĆ£o eficiente das polĆticas pĆŗblicas de saĆŗde, tem conduzido induzido gestores pĆŗblicos a adotarem soluƧƵes nem sempre ortodoxas, no afĆ£ de driblar os excessos do regime administrativo, orƧamentĆ”rio, contĆ”bil e financeiro e viabilizar a oferta de serviƧos de saĆŗde Ć população.
A terceirização excessiva e indiscriminada de atividades e serviƧos junto ao setor privado Ć© uma delas ā prĆ”tica que vem sendo arguida pelo Tribunal de Contas da UniĆ£o, com base nos seus achados de auditorias realizados em secretarias estaduais e municipais de saĆŗde de todo o PaĆs. Cite-se, a tĆtulo de exemplo, os achados constantes do TC 017.783/2014-3[3], que dentre outras irregularidades, identificou convĆŖnios, termos de parceria e contratos de gestĆ£o que terceirizaram funƧƵes nĆ£o passĆveis de serem terceirizadas, tais como (a) implantação do plano municipal de saĆŗde; (b) recuperação e conservação da Ć”rea fĆsica; (c) organização gerencial e funcionamento da farmĆ”cia, almoxarifado, da Ć”rea de recursos humanos e do laboratório; (d) aquisição e localização de equipamentos; (e) manutenção geral das unidades de atendimentos; equipamentos e mĆ”quinas e veĆculos; (f) hierarquização e organização do fluxo e contrafluxo do atendimento; (g) contratação de serviƧos de terceiros; (h) aprimoramento do serviƧo de faturamento; (i) implantação de processo de acolhimento com avaliação e classificação de riscos; (j)implantação da polĆtica nacional de humanização.
Ainda que a curto prazo, a estratégia de fuga do regime administrativo por meio da contratação com o setor privado possa gerar resultados positivos, por viabilizar a realização da atividade ou serviço; seus efeitos a médio e a longo prazo são eminentemente negativos, desorganizadores e desorientadores. Desviam o investimento do fortalecimento, da ampliação e da consolidação da rede pública de saúde; afetam a sua capacidade operativa e a sua legitimidade perante a população; e, adicionalmente, põem em suspeição o uso dos modelos de parceria entre o Poder Público e o setor privado não lucrativo, contribuindo para demonizar as intenções e as prÔticas de um e de outro lado.
O Sistema Ćnico de SaĆŗde pĆŗblico, universal e provedor da atenção integral Ć saĆŗde aos cidadĆ£os, com equidade, Ć© uma conquista da Sociedade Brasileira, consignada na Carta Maior do PaĆs. Sua consolidação, entretanto, depende do interesse, da vontade social de tornĆ”-lo, de fato, uma realidade; uma vez que nĆ£o hĆ” como efetivar a Constituição se nĆ£o pela sua defesa cotidiana, concreta e articulada. A revisĆ£o das formas jurĆdico-institucionais de atuação da rede pĆŗblica de saĆŗde para sua adequação aos desafios impostos pela Constituição Ć© uma medida imperativa e urgente para efetivação do Sistema.
Impor Ć s atividades executivas da rede pĆŗblica de saĆŗde o mesmo regime jurĆdico-administrativo e os mesmos controles que recaem sobre as atividades tĆpicas e privativas da burocracia pĆŗblica Ć© uma forma velada de inviabilizar o SUS e promover a ação privada, fomentando, por um lado, a lógica que o privado Ć© mais eficiente do que o pĆŗblico e, por outro, o preconceito contra a participação privada dentro do Sistema, jĆ” reconhecida como importante na própria Constituição Federal.
[1] ExtraĆdo do artigo āOs desafios Ć concretização do Sistema Ćnico de SaĆŗde, como um sistema eminentemente pĆŗblicoā, publicado em 2016 pelos autores. [2] Conforme aula ministrada por Lenir Santos no V Curso de Especialização em Direito SanitĆ”rio Aplicado, em 27 de agosto de 2016, em Campinas (SP). [3] O TC 017.783/2014-3 de 2014, do Tribunal de Contas da UniĆ£o trata-se de Relatório de Auditoria que consolida Fiscalização de Orientação Centralizada ā FOC, realizada na forma de auditoria de conformidade, que teve como objetivo avaliar a regularidade dos ajustes firmados pelos governos municipais com entidades privadas para a prestação de serviƧos de saĆŗde, em municĆpios selecionados em seis estados do paĆs: BA: Barra do ChoƧa, Candeias, Ibirapitanga, Jeremoabo; MA: Imperatriz; PR: Bela Vista do ParaĆso; RJ: ItaboraĆ; RS: CandelĆ”ria, Porto Alegre e Vacaria; e SC: BalneĆ”rio CamboriĆŗ.
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